Questão número 667851

[O motor da preguiça]

        Acho que a verdadeira força motriz do desenvolvimento humano, a razão da superioridade e do sucesso do Homem, foi a preguiça. A técnica é fruto da preguiça. O que são o estilingue, a flecha e a lança senão maneiras de não precisar ir lá e esgoelar a caça ou um semelhante com as mãos, arriscando-se a levar a pior e perder a viagem? O que estaria pensando o inventor da roda senão no eventual desenvolvimento da charrete, que, atrelada a um animal menos preguiçoso do que ele, o levaria a toda parte sem que ele precisasse correr ou caminhar?

      Toda a história das telecomunicações, desde os tambores tribais e seus códigos primitivos até os sinais da TV e a internet, se deve ao desejo humano de enviar a mensagem em vez de ir entregá-la pessoalmente. A fome de riqueza e poder do Homem não passa da vontade de poder mandar os outros fazerem o que ele tem preguiça de fazer, seja de trazer os seus chinelos ou construir suas pirâmides.

      A química moderna é filha da alquimia, que era a tentativa de ter o ouro sem ter que procurá-lo, ou trabalhar para merecê-lo. A física e a filosofia são produtos da contemplação, que é um subproduto da indolência e uma alternativa para a sesta, A grande arte também se deve à preguiça. Não por acaso, o que é considerada a maior realização da melhor época da arte ocidental, o teto da Capela Sistina, foi feita pelo Michelangelo deitado. Marcel Proust escreveu Em busca do tempo perdido deitado. Vá lá, recostado. As duas maiores invenções contemporâneas, depois do antibiótico e do microchip, que são a escada rolante e o manobrista, devem sua existência à preguiça. E nem vamos falar no controle remoto.

(Adaptado de: VERISSIMO, Luis Fernando. O mundo é bárbaro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 54-55) 

Para obter os efeitos do humor ácido que caracteriza suas crônicas, Luis Fernando Veríssimo explora nesse texto, metodicamente,

    A) uma sequência de invenções imaginárias, às quais se atribui uma importância que efetivamente elas não poderiam ter.

    B) o critério da fantasia histórica, pela qual se considera que todas as invenções nasceram da vocação humana para o humor.

    C) o contraste entre motivações falsas e motivações verdadeiras nas criações humanas, de modo que o leitor não consiga distinguir umas das outras.

    D) uma série diferenciada de impulsos humanos que nos permitem atestar a finalidade real das invenções da modernidade.

    E) a desproporção entre a grande importância de diferentes criações humanas e um mesmo motivo trivial que as teria impulsionado.

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